Uma estranha chamada
Imagem por: Gustavo Matsunaga
O homem recostou-se no pilar tortuoso que decorava sua nave.
A tela no console apresentava apenas escuridão, com alguma informação
irrelevante piscando em vermelho num canto. As luzes piscavam num silêncio
cúmplice. Uma lágrima escorreu do canto de seu olho até a ponta do nariz, de
onde pingou, formando uma nódoa escurecida no sobretudo marrom. Ele não se
incomodou em secar os olhos. Na realidade, suas mãos estavam enfiadas nos
bolsos, conformadas.
Ele conhecia bem aquela dor. Bem demais. Em sua mente os
pensamentos se sucediam vertiginosamente como sempre, mas ninguém poderia
adivinhar observando a imobilidade de seu corpo.
Ninguém poderia adivinhar, mesmo, porque não havia mais
ninguém ali – foi um dos milhares de pensamentos esvoaçantes. Claro, esse se
destacou em meio aos demais, dadas as circunstâncias.
Sentimentos... Como ele havia chegado a passar por isso
mesmo? Tinha certeza de uma coisa: a culpa era sua. E mais uma vez, aquele
aperto no peito, aquele nó no estômago. Era a história mais velha do mundo. E
ainda assim não era menos intensa aquela sensação.
O som de um suspiro preencheu brevemente o espaço. O homem
sabia que aquilo, também, passaria. Conhecia a natureza do tempo como nenhuma
outra pessoa no Universo. E sabia que ela ficaria bem. Como, nem seus instintos
de Senhor do Tempo o permitiam ter clareza. A maior parte do tempo não tinha.
Mas tinha aquela intuição, aquela certeza vindo de algum lugar estranho e
distante, algum lugar de dentro...
Entre os pensamentos, passavam imagens de uma garotinha
loira, céus cor-de-laranja, céus azuis, sensações de diferentes mãos segurando
diferentes mãos. E a cada tanto de imagens lá estava ela de novo. O sorriso
dela...
Se alguém olhasse muito atentamente, veria um movimento
sutil no canto dos lábios daquele homem, algo que pretendia ser um semi-sorriso,
mas acabava sendo uma total incongruência.
Os devaneios se desfizeram quando o telefone tocou. Aquilo
era tão inusitado, ali, no meio do nada, nos confins da realidade, que ele se
deu conta de que a lágrima que escorrera já havia secado completamente e os
seus pés estavam dormentes. Quanto tempo haveria passado?
Caminhou devagar até o telefone no painel de controle e
hesitou por um momento antes de atender, oscilando entre o instinto de voar
para bem longe, inalcançável, a um lugar em que ninguém tivesse ouvido falar
dele, procurar um perigo qualquer para enfrentar e nunca mais olhar de novo
para aquele pontinho azul no meio daquela galáxia leitosa, nunca mais pensar
nas pessoas e no lugar que o fizeram descobrir aqueles sentimentos terríveis e
maravilhosos... E de outro lado, o medo daquele vazio repleto de demônios,
aquele absurdo medo de ficar só com os fantasmas.
O telefone era insistente.
Ele estendeu a mão e tirou o fone do gancho. A ligação
parecia rachada. Duas vozes se alternavam. Uma era mecânica e grave. A outra
era feminina, claramente humana.
- Muito bem, Doutor... – disse a voz grave.
- Alô? Quem é? – o Doutor se reclinou para a frente ao ouvir
a voz feminina, apoiando-se no painel enquanto segurava o fone firmemente.
- Você sabe o que fazer agora? – ele não sabia, achava que
já tinha feito o que deveria fazer.
- Preciso de ajuda aqui! Alô? – esse chamado parecia vir da
Terra.
- Por que o silêncio? Está triste? Essa garota te deixou
humano demais... – ele sentiu no peito uma pontada de dor que misturava
tristeza e raiva.
- É da polícia? Por que não respondem? O quê... – as
sobrancelhas do Doutor estavam tão franzidas que quase se uniam no centro.
- Venha até aqui. Temos contas a acertar. – ele suspirou e
levantou a cabeça, imaginando o que esse maluco poderia querer dele dessa vez.
- Por favor, venham logo! As pessoas estão loucas! O que é
aquilo!? – o tom de voz da mulher fez com que ele mudasse de expressão,
entreabrindo os lábios.
- Você quer mantê-la viva, não é? Ela e a família dela... –
ele não poderia machuca-la onde ela estava agora. Ou poderia?
- Está mudo... Se alguém estiver ouvindo: tem uma coisa saindo do mar! – uma coisa? O Doutor coçou a cabeça com a mão
que não segurava o fone e virou-se, quase se sentando sobre o painel.
- Você tem dois dias para aparecer, Doutor. Sem truques. – a
voz ameaçadora foi categórica.
- Meu nome é Clara e precisamos de ajuda!
O telefone ficou mudo, assim como o Doutor havia estado
durante toda a confusão. Um dilema. Ah! Um pouco de adrenalina. Ele coçou a
cabeça, bagunçando os cabelos. Sabia o que devia fazer. Sabia o que precisava
fazer. Sabia que não poderia arriscar nenhum atraso considerando que não sabia
exatamente quem era aquele com quem
negociava. Mas qualquer um que soubesse a respeito da fragilidade da realidade
devido àquela tentativa de contato com Rose seria capaz de identificar as
pequenas gotas de distorção temporal que apareceriam caso viajasse com a TARDIS
no tempo. O tom da voz ao telefone deixava claro que Rose ainda corria perigo.
Ela salvara o mundo tantas vezes e ainda assim era tão indefesa... Mas a voz no
telefone... a outra voz. Parecia
realmente urgente. Dois dias... Bem, deveria ser tempo suficiente.
Respirou fundo, deu algumas voltas em torno de seu próprio
eixo e transladando o painel central, levantando os braços como se estivesse se
preparando para dançar e pressionando botões, ajustando parâmetros, até chegar
naquela alavanca. Viu seu próprio reflexo na tela escura em que piscava em
vermelho “nexo temporal estabelecido”. Estava péssimo. Estava ótimo! Tomou ar e
puxou de uma vez a alavanca, preenchendo o espaço em que a TARDIS se
desmaterializava com um brilho suave e um som rangente misturado com uma
palavra gritada:
- Allons-y!!!
Nenhum comentário:
Postar um comentário