9 de fevereiro de 2015

A viagem dos sonhos - Cap. 1

Uma estranha chamada


Imagem por: Gustavo Matsunaga

O homem recostou-se no pilar tortuoso que decorava sua nave. A tela no console apresentava apenas escuridão, com alguma informação irrelevante piscando em vermelho num canto. As luzes piscavam num silêncio cúmplice. Uma lágrima escorreu do canto de seu olho até a ponta do nariz, de onde pingou, formando uma nódoa escurecida no sobretudo marrom. Ele não se incomodou em secar os olhos. Na realidade, suas mãos estavam enfiadas nos bolsos, conformadas.

Ele conhecia bem aquela dor. Bem demais. Em sua mente os pensamentos se sucediam vertiginosamente como sempre, mas ninguém poderia adivinhar observando a imobilidade de seu corpo.

Ninguém poderia adivinhar, mesmo, porque não havia mais ninguém ali – foi um dos milhares de pensamentos esvoaçantes. Claro, esse se destacou em meio aos demais, dadas as circunstâncias.
Sentimentos... Como ele havia chegado a passar por isso mesmo? Tinha certeza de uma coisa: a culpa era sua. E mais uma vez, aquele aperto no peito, aquele nó no estômago. Era a história mais velha do mundo. E ainda assim não era menos intensa aquela sensação.

O som de um suspiro preencheu brevemente o espaço. O homem sabia que aquilo, também, passaria. Conhecia a natureza do tempo como nenhuma outra pessoa no Universo. E sabia que ela ficaria bem. Como, nem seus instintos de Senhor do Tempo o permitiam ter clareza. A maior parte do tempo não tinha. Mas tinha aquela intuição, aquela certeza vindo de algum lugar estranho e distante, algum lugar de dentro...

Entre os pensamentos, passavam imagens de uma garotinha loira, céus cor-de-laranja, céus azuis, sensações de diferentes mãos segurando diferentes mãos. E a cada tanto de imagens lá estava ela de novo. O sorriso dela...

Se alguém olhasse muito atentamente, veria um movimento sutil no canto dos lábios daquele homem, algo que pretendia ser um semi-sorriso, mas acabava sendo uma total incongruência.

Os devaneios se desfizeram quando o telefone tocou. Aquilo era tão inusitado, ali, no meio do nada, nos confins da realidade, que ele se deu conta de que a lágrima que escorrera já havia secado completamente e os seus pés estavam dormentes. Quanto tempo haveria passado?

Caminhou devagar até o telefone no painel de controle e hesitou por um momento antes de atender, oscilando entre o instinto de voar para bem longe, inalcançável, a um lugar em que ninguém tivesse ouvido falar dele, procurar um perigo qualquer para enfrentar e nunca mais olhar de novo para aquele pontinho azul no meio daquela galáxia leitosa, nunca mais pensar nas pessoas e no lugar que o fizeram descobrir aqueles sentimentos terríveis e maravilhosos... E de outro lado, o medo daquele vazio repleto de demônios, aquele absurdo medo de ficar só com os fantasmas.

O telefone era insistente.

Ele estendeu a mão e tirou o fone do gancho. A ligação parecia rachada. Duas vozes se alternavam. Uma era mecânica e grave. A outra era feminina, claramente humana.

- Muito bem, Doutor... – disse a voz grave.

- Alô? Quem é? – o Doutor se reclinou para a frente ao ouvir a voz feminina, apoiando-se no painel enquanto segurava o fone firmemente.

- Você sabe o que fazer agora? – ele não sabia, achava que já tinha feito o que deveria fazer.

- Preciso de ajuda aqui! Alô? – esse chamado parecia vir da Terra.

- Por que o silêncio? Está triste? Essa garota te deixou humano demais... – ele sentiu no peito uma pontada de dor que misturava tristeza e raiva.

- É da polícia? Por que não respondem? O quê... – as sobrancelhas do Doutor estavam tão franzidas que quase se uniam no centro.

- Venha até aqui. Temos contas a acertar. – ele suspirou e levantou a cabeça, imaginando o que esse maluco poderia querer dele dessa vez.

- Por favor, venham logo! As pessoas estão loucas! O que é aquilo!? – o tom de voz da mulher fez com que ele mudasse de expressão, entreabrindo os lábios.

- Você quer mantê-la viva, não é? Ela e a família dela... – ele não poderia machuca-la onde ela estava agora. Ou poderia?

- Está mudo... Se alguém estiver ouvindo: tem uma coisa saindo do mar! – uma coisa? O Doutor coçou a cabeça com a mão que não segurava o fone e virou-se, quase se sentando sobre o painel.

- Você tem dois dias para aparecer, Doutor. Sem truques. – a voz ameaçadora foi categórica.

- Meu nome é Clara e precisamos de ajuda!

O telefone ficou mudo, assim como o Doutor havia estado durante toda a confusão. Um dilema. Ah! Um pouco de adrenalina. Ele coçou a cabeça, bagunçando os cabelos. Sabia o que devia fazer. Sabia o que precisava fazer. Sabia que não poderia arriscar nenhum atraso considerando que não sabia exatamente quem era aquele com quem negociava. Mas qualquer um que soubesse a respeito da fragilidade da realidade devido àquela tentativa de contato com Rose seria capaz de identificar as pequenas gotas de distorção temporal que apareceriam caso viajasse com a TARDIS no tempo. O tom da voz ao telefone deixava claro que Rose ainda corria perigo. Ela salvara o mundo tantas vezes e ainda assim era tão indefesa... Mas a voz no telefone... a outra voz. Parecia realmente urgente. Dois dias... Bem, deveria ser tempo suficiente.

Respirou fundo, deu algumas voltas em torno de seu próprio eixo e transladando o painel central, levantando os braços como se estivesse se preparando para dançar e pressionando botões, ajustando parâmetros, até chegar naquela alavanca. Viu seu próprio reflexo na tela escura em que piscava em vermelho “nexo temporal estabelecido”. Estava péssimo. Estava ótimo! Tomou ar e puxou de uma vez a alavanca, preenchendo o espaço em que a TARDIS se desmaterializava com um brilho suave e um som rangente misturado com uma palavra gritada:


- Allons-y!!!

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